A favela tem rosto de mulher no estado mais rico do agro
Dados do Censo 2022 do IBGE revelam que mulheres são maioria (51,2%) na população de quase 100 mil pessoas que vivem em favelas em Mato Grosso, o estado mais rico do agronegócio. Elas formam a linha de frente da vulnerabilidade social e da ausência de políticas públicas.
Mulheres chefiam a maioria dos lares em comunidades urbanas precárias de Mato Grosso, enfrentando a falta de infraestrutura em meio à riqueza gerada pelo agronegócio no estado.(Foto: Rogério Florentino/Yahoo
Em cada dez moradores de favelas no estado, mais de cinco são mulheres; elas são a linha de frente na luta diária contra a ausência de serviços e a desigualdade.
O sol ainda não queima o asfalto esburacado, mas em milhares de lares nos bolsões de pobreza que contornam a capital, o dia já começou há muito tempo. A rotina da jornada dupla, de organizar a vida dos filhos antes de partir para o trabalho, se repete à exaustão. Esta cena cotidiana, anônima para a maioria, é a representação mais fiel de uma estatística fria revelada pelo último Censo do IBGE: nas favelas e comunidades urbanas de Mato Grosso, o rosto da resistência é, predominantemente, feminino.
São elas a maioria. Nos quase 34 mil domicílios em condições precárias espalhados pelo estado, as mulheres não apenas superam os homens em número, como sustentam, na prática, a frágil estrutura social desses territórios. Os dados mostram que, dos quase 100 mil habitantes dessas áreas, 51,2% são mulheres, somando 50.404 cidadãs — 2.373 a mais que o total de homens. Um desequilíbrio que, longe de ser um mero detalhe demográfico, expõe quem de fato está na linha de frente da vulnerabilidade.
Os números contam uma história de abandono e resiliência. Essa maioria feminina não é um acaso, mas um reflexo direto de arranjos familiares onde a figura da mãe solo é cada vez mais comum, e da própria dinâmica de um mercado de trabalho que empurra muitas para a informalidade e para perto de casa. O problema é que, nesses territórios, “perto de casa” significa longe de quase tudo.
É sobre os ombros delas que o peso da ausência do Estado se torna mais cruel. A falta de creches, por exemplo, impõe uma escolha brutal: trabalhar ou cuidar dos filhos? A distância de um posto de saúde transforma uma febre infantil numa peregrinação aflitiva. A iluminação pública deficiente, por sua vez, torna o caminho de volta do trabalho um percurso diário de medo. Elas são, na essência, a infraestrutura humana que remenda as lacunas deixadas pelo poder público, uma cola social invisível que impede o colapso total.
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Cuiabá, o espelho da situação
Na capital do agronegócio, o cenário é ainda mais emblemático. Em Cuiabá, onde se concentra a maior população em favelas do estado, a proporção de mulheres sobe para 51,4%. É um espelho nítido de como o progresso, celebrado nos grandes empreendimentos e nos centros financeiros da cidade, não consegue atravessar as fronteiras da exclusão. Essa realidade cria cidades dentro da cidade; uma formal e próspera, outra, majoritariamente feminina, que sobrevive com o que sobra.
A questão que os dados impõem é indigesta. O modelo de desenvolvimento de Mato Grosso, que gera tanta riqueza no campo, estaria produzindo uma nova forma de pobreza nas cidades? Uma pobreza que desgasta principalmente suas mulheres, exigindo delas uma força que nenhum indicador econômico é capaz de medir. Enquanto a resposta não vem, milhares de mulheres seguem, dia após dia, sendo o pilar de um mundo que insiste em não lhes dar um chão firme.
Justiça sob suspeita: CNJ deflagra inspeção-geral no TJMT a partir da semana que vem (24)
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realiza uma inspeção no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) de 24 a 27 de junho de 2025. A medida é uma resposta direta a graves escândalos de corrupção, incluindo a Operação Sisamnes, que apura um esquema de venda de sentenças e o suposto elo de magistrados com o grupo de extermínio “Comando C4”.
Sede do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que passa por inspeção do Conselho Nacional de Justiça em meio a investigações sobre esquemas de corrupção e venda de sentenças envolvendo magistrados.Foto: Rogério Florentino
Fiscalização ocorre em meio a investigações sobre venda de sentenças e o elo de magistrados com um suposto grupo de extermínio
Uma força-tarefa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), liderada pessoalmente pelo Corregedor Nacional, Ministro Mauro Campbell Marques, desembarca em Cuiabá na próxima semana para uma ampla e minuciosa inspeção no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT). A fiscalização, agendada para ocorrer entre os dias 24 e 27 de junho, não é mera rotina; ela acontece sob o peso de uma atmosfera carregada, marcada por escândalos que expuseram uma crise de credibilidade sem precedentes na instituição.
Oficialmente, o procedimento é classificado como ordinário. No entanto, o contexto é tudo. A inspeção vasculhará setores administrativos e judiciais justamente quando o tribunal se vê no epicentro de investigações que conectam seus membros a esquemas de venda de decisões e a uma organização criminosa.
A ponta do iceberg
O estopim da crise mais recente foi o assassinato do advogado Roberto Zampieri, em 5 de dezembro de 2023. O que parecia ser apenas um crime brutal revelou-se a ponta de um iceberg de corrupção. Investigações no celular da vítima descortinaram um suposto esquema de venda de sentenças que abalou as estruturas do Judiciário mato-grossense.
As apurações levaram à Operação Sisamnes, que, em agosto de 2024, culminou no afastamento cautelar dos desembargadores Sebastião de Moraes Filho e João Ferreira Filho. Segundo a Corregedoria, ambos são suspeitos de manter “amizade íntima” com Zampieri e receber vantagens financeiras, incluindo duas barras de ouro, para julgar recursos conforme os interesses do advogado. A troca de 768 mensagens entre Sebastião de Moraes e Zampieri, onde o advogado parecia ditar os rumos de processos judiciais, evidenciou uma relação descrita pelos investigadores como de “subserviência”. A investigação também constatou que a esposa e um filho do desembargador, oficialmente lotados em outros gabinetes, na verdade trabalhavam no gabinete de Sebastião.
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A primeira fase da operação, em novembro de 2024, resultou na prisão do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves, apontado como peça central no esquema. A segunda fase, em dezembro, focou na lavagem de dinheiro, revelando o uso de operações imobiliárias suspeitas e resultando no bloqueio de R$ 1,8 milhão. Em maio de 2025, as apurações se estenderam ao juiz Ivan Lúcio Amarante, também afastado.
Do tribunal ao crime organizado
A trama ganhou contornos ainda mais sombrios com a descoberta do “Comando C4: Caça Comunistas, Corruptos e Criminosos”. A investigação revelou que este grupo, composto por militares, funcionava como uma agência de extermínio por encomenda e teria sido o responsável pela execução de Roberto Zampieri. Com uma tabela de preços que chegava a R$ 250 mil para espionar ministros do STF, o grupo utilizava drones e táticas avançadas. Cinco suspeitos foram presos, incluindo o coronel da reserva Luiz Caçadini, apontado como o financiador do crime.
Para quem acompanha o TJMT, a sensação é de déjà vu. Entre 2003 e 2005, um esquema desviou mais de R$ 1,4 milhão para uma loja maçônica presidida pelo então chefe do Judiciário estadual, José Ferreira Leite. A fraude foi confirmada por uma auditoria da consultoria Velloso & Bertoni Ltda., que apontou “pagamentos de correção monetária abusivos e exagerados”.
O caso resultou na aposentadoria compulsória de dez magistrados em 2010, que passaram a custar mais de R$ 3,4 milhões anuais em valores brutos aos cofres públicos. Contudo, em uma reviravolta que causa perplexidade, decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2022 reverteram as punições, permitindo o retorno dos magistrados. Vários deles, então, processaram o estado, resultando em pagamentos milionários — apenas três juízes, por exemplo, conseguiram receber R$ 16,9 milhões em diferenças salariais.
O peso financeiro da suspeita
Enquanto as investigações avançam, os cofres públicos continuam a arcar com os custos da suspeição. Os desembargadores afastados, amparados pela presunção de inocência, seguem recebendo salários integrais. Entre agosto de 2024 e janeiro de 2025, João Ferreira Filho recebeu R$ 482.610,29 líquidos. No mesmo período, Sebastião de Moraes Filho recebeu R$ 462.329,41. Paralelamente, o Superior Tribunal de Justiça passou a anular decisões proferidas por eles, determinando novos julgamentos para preservar a segurança jurídica.
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Devassa minuciosa
É neste cenário complexo que a equipe de Mauro Campbell Marques atuará. Composta por cerca de 40 pessoas, a força-tarefa terá acesso irrestrito a gabinetes, sistemas e documentos. A inspeção abrangerá a cúpula do TJMT, incluindo os gabinetes da presidência, vice-presidência e corregedoria-geral, além de unidades em Cuiabá, Várzea Grande, Santo Antônio do Leverger e Poconé.
Os trabalhos forenses não serão suspensos, mas a presença constante dos auditores do CNJ é um lembrete inequívoco de que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso está, mais uma vez, sob um intenso e necessário escrutínio.
Para entender melhor:
Operação Sisamnes: O nome faz alusão a um juiz persa da antiguidade que, segundo a lenda, foi esfolado vivo por ordem do rei por ter aceitado suborno e proferido uma sentença injusta. Sua pele foi usada para forrar a cadeira em que seu filho, o novo juiz, se sentaria, como um lembrete perpétuo sobre a integridade.
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